por Ciro Inácio Marcondes*
Curador da Mostra de Cinema Negro – Back2Black (2009), no Museu Nacional da Republica (Brasília)
Em 1915, o filme O nascimento da uma nação, dirigido por D.W. Griffith, provocou uma grande
virada formal e mercadológica no cinema americano. Altamente elaborado com inovadoras técnicas de narração, produção e montagem, o filme também permitiu que o público de cinema aceitasse a possibilidade de se assistir a filmes em longa-metragem. Rapidamente transformou-se em um enorme e lucrativo sucesso, chegando a ser visto por 100 milhões de americanos2. O nascimento de uma nação, porém, trazia também consigo um horripilante legado: trata-se de um dos filmes mais agressivamente racistas da história, vangloriando a Ku Klux Klan e retratando os negros como pessoas maléficas, malintencionadas, gananciosas e selvagens.
Geralmente identificado como um símbolo do nascimento da indústria e arte cinematográfica
norteamericanas, o filme de Griffith também anunciava o longo período de exclusão que a população negra teria de sofrer até que pudesse legitimamente se autorrepresentar na arte mais importante do século XX. Durante os 40 primeiros anos do cinema americano, era comum que personagens negros fossem interpretados de maneira pejorativa por brancos pintados de preto. Afundados eticamente em um nefasto apartheid que já durava quase um século (as leis Jim Crow), os Estados Unidos só aprovaram direitos iguais para brancos e negros no ato dos direitos civis de 1964.
Pelo mundo afora, as condições não eram muito mais favoráveis. Se, nos Estados Unidos
desgostosos com a Guerra do Vietnã, uma série de mudanças comportamentais, culturais e políticas trouxe maior liberdade à população negra, na África o cinema efetivamente só nasceu após o período colonial, que acelera sua desintegração também a partir dos anos 60. Até hoje, porém, o cinema africano depende imensamente de financiamento europeu e encontra dificuldade em encontrar plateias em seu próprio território (o que começa a mudar com lucrativas indústrias nacionais, como a da Nigéria e a de Gana). Aos poucos, porém, as transformações culturais foram dando vazão à proliferação de uma forte cultura cinematográfica negra em diferentes territórios do planeta, da Jamaica ao Mali, da Martinica ao Brasil, conforme exibiremos na mostra de cinema Back2Black.
Assim, no primeiro dia veremos como a cultura negra tomou de assalto o pop global a partir dos anos 60, com investimentos de Hollywood para que os negros produzissem filmes imersos em sua cultura, a partir de suas próprias experiências. O detetive Shaft, do filme homônimo, tornou-se símbolo de uma autorrepresentação pop, e influenciou largamente o cinema americano posterior, como por exemplo o do nerd branquelo Quentin Tarantino. A cultura jamaicana, também envolvida em um processo de independência e influenciada pela música (R&B) e pelos movimentos raciais norteamericanos, tem em Rockers um filme que a ajudou a se tornar um dos pilares da cultura pop global. Spike Lee, por fim, tornou-se porta-voz, com seu cinema inteligentíssimo, das inconsistências culturais envolvendo o problema racial nos Estados Unidos.
Voltado à alta elaboração do cinema africano francófono, o segundo dia privilegia filmes
consagrados em festivais internacionais, que trazem à tona visões (às vezes polêmicas) desconhecidas, pelos ocidentais, sobre o continente. Finyé, do malinês Cissé, revela o ambíguo poder do questionamento social, enquanto Tilaï, de Quadraogo, aborda um problema cultural inserido em uma cultura tribal, de difícil compreensibilidade para os ocidentais, que comumente enxergam o filme com exotismo. Já o mauritano Sissako se insere melhor no contexto de um cinema mais global, moldando seus filmes com tons de intimismo, poesia e projeções universais.
No último dia veremos filmes que, sob ângulos vastamente diversos, procuraram documentar
a chamada negritude – condição do negro, tão amplamente discutida pelo poeta e pensador martinicano Aimé Césaire, que participa do filme A força de olhar o amanhã. Visões contrastantes, como o retrato, pelo ativista cinematográfico Jéferson D, da favelada Carolina de Jesus, e o olhar ainda distanciado, porém livre, do europeu Jean Rouch em Eu, um negro, buscam abordagens distintas desta condição. A presença importante da língua portuguesa, hoje em dia, no mundo lusófono africano, representado em A liga da língua, também procura examinar essa história. O filme A negação do Brasil, de Joel Zito Araújo, por fim, restabelece esse desencontro do negro com sua representação na cultura de massas que se inicia em Griffith, investigando a desigual trajetória desta representação na telenovela brasileira, mostrando que, mesmo que nos últimos 50 anos a estrada para a igualdade tenha avançado em passos largos, há ainda muito caminho pela frente.
* A imagem que ilustra este texto é do belo documentário Entre Vãos, de Luisa Caetano, 2010.