Cinema mudo ou silencioso?
Para começar uma pequena discussão que preceda o início das nossas atividades no curso (esquente), algumas palavrinhas sobre este misterioso módulo do cinema antigo. Em primeiro lugar, por que chamá-lo de “silencioso” e não “mudo”, como estamos já habituados? Bem, a princípio para haver uma unificação com a terminologia de língua inglesa (silent film), que é o lócus que intensifica cada vez mais os estudos deste cinema. Os franceses, mais conservadores (e ainda preservando o velho charme), ainda gostam da terminologia popular (cinéma muet), mas é principalmente com estudos de historiadores americanos como David Bordwell, Charles Musser e Eileen Bowser que este nicho dos estudos de cinema avança enormemente. O problema terminológico é um tanto bobo. Eu mesmo gosto da simpatia chauvinista pela termo “mudo”. A justificativa dada é que estes filmes são silenciosos (questionável, como veremos quando abordarmos o som no cinema mudo), mas dizem algo, não são mudos. Ora, as pessoas mudas também são, hm, digamos, silenciosas, mas também dizem coisas perfeitamente, não é? Mesmo assim, fiquemos com a elegância do termo silencioso, já que ele introjeta bem a ideia de que este cinema, hoje um tanto esquecido, ainda possui uma massiva, porém sub-reptícia, influência sobre o cinema contemporâneo. Se pegarmos o nosso cinema de hoje, é fácil vislumbrar a influência de Eisenstein em Walter Salles (Abril Despedaçado) ou de Carl T. Dreyer em Luís Fernando Carvalho (Lavoura Arcaica, A Pedra do Reino).
A poética silenciosa
Bem, é de comum acordo entre pesquisadores da tela silenciosa que este cinema é radicalmente diferente dos talkies (como foram chamados, à época do surgimento do som sincronizado – circa 1927 –, os filmes falados). O grande humanista Saulo Pereira de Mello chegou a me dizer que se tratam de artes diferentes. Em certo aspecto, é uma opinião fortemente respeitável. Tenho um palpite de que o silêncio destes filmes silenciosos nos reconduz a uma relação diferente com a imagem projetada, a imagem recortada, a imagem pura e espectral. Há um clássico (e um tanto em desuso) termo cunhado por Louis Delluc, a fotogenia, que sublima nossas inquietações em relação à imagem em si. Não se pode explicar o arrebatamento que a imagem pura nos provoca; ela apenas enche os olhos, se infiltra pelos poros. Quando recortamos um “pedaço de realidade” e o transferimos para uma película projetada numa tela, essa “realidade” se duplica, e essa duplicação (eu poderia dar uma viajada na psicanálise lacaniana, mas vou me abster disso) nos provoca esse arrepio, esse arrebatamento. O código frouxo da montagem, as associações livres que fazemos (reflexão tão bem erigida por Eisenstein ao longo de décadas), nos permitem fazer esse mergulho no mundo; no mundo capturado, um mundo em cativeiro, de impressões e curiosidades intermináveis. Esse código fluido e difuso das imagens (por que vocês acham que o cinema mudo foi tão hospitaleiro com a vanguarda, o experimental e o abstrato?), quando atravessado por um código invasor – o código da língua, do diálogo, das palavras – é deixado para trás em prol de uma visão mais organizadora e racional do mundo. Esse encanto da imagem pura, do fluxo e do infinito cede passagem a uma ordenação natural da narrativa; uma ordenação que diz mais à parte de nós que pensa com palavras do que àquela que pensa com imagens. Nasce o cinema clássico, com seus musicais e comédias amalucadas. Nesse sentido, concordando com Saulo, os talkies mataram uma arte e criaram outra. Não seria a última morte do cinema, mas certamente foi a de mais penoso luto.
Ciro I. Marcondes
Para ilustrar, deixo aqui um fabuloso trecho de "A última gargalhada", de Murnau, filme concebido inteiramente sem palavras, letreiros ou inter-títulos.
Para começar uma pequena discussão que preceda o início das nossas atividades no curso (esquente), algumas palavrinhas sobre este misterioso módulo do cinema antigo. Em primeiro lugar, por que chamá-lo de “silencioso” e não “mudo”, como estamos já habituados? Bem, a princípio para haver uma unificação com a terminologia de língua inglesa (silent film), que é o lócus que intensifica cada vez mais os estudos deste cinema. Os franceses, mais conservadores (e ainda preservando o velho charme), ainda gostam da terminologia popular (cinéma muet), mas é principalmente com estudos de historiadores americanos como David Bordwell, Charles Musser e Eileen Bowser que este nicho dos estudos de cinema avança enormemente. O problema terminológico é um tanto bobo. Eu mesmo gosto da simpatia chauvinista pela termo “mudo”. A justificativa dada é que estes filmes são silenciosos (questionável, como veremos quando abordarmos o som no cinema mudo), mas dizem algo, não são mudos. Ora, as pessoas mudas também são, hm, digamos, silenciosas, mas também dizem coisas perfeitamente, não é? Mesmo assim, fiquemos com a elegância do termo silencioso, já que ele introjeta bem a ideia de que este cinema, hoje um tanto esquecido, ainda possui uma massiva, porém sub-reptícia, influência sobre o cinema contemporâneo. Se pegarmos o nosso cinema de hoje, é fácil vislumbrar a influência de Eisenstein em Walter Salles (Abril Despedaçado) ou de Carl T. Dreyer em Luís Fernando Carvalho (Lavoura Arcaica, A Pedra do Reino).
A poética silenciosa
Bem, é de comum acordo entre pesquisadores da tela silenciosa que este cinema é radicalmente diferente dos talkies (como foram chamados, à época do surgimento do som sincronizado – circa 1927 –, os filmes falados). O grande humanista Saulo Pereira de Mello chegou a me dizer que se tratam de artes diferentes. Em certo aspecto, é uma opinião fortemente respeitável. Tenho um palpite de que o silêncio destes filmes silenciosos nos reconduz a uma relação diferente com a imagem projetada, a imagem recortada, a imagem pura e espectral. Há um clássico (e um tanto em desuso) termo cunhado por Louis Delluc, a fotogenia, que sublima nossas inquietações em relação à imagem em si. Não se pode explicar o arrebatamento que a imagem pura nos provoca; ela apenas enche os olhos, se infiltra pelos poros. Quando recortamos um “pedaço de realidade” e o transferimos para uma película projetada numa tela, essa “realidade” se duplica, e essa duplicação (eu poderia dar uma viajada na psicanálise lacaniana, mas vou me abster disso) nos provoca esse arrepio, esse arrebatamento. O código frouxo da montagem, as associações livres que fazemos (reflexão tão bem erigida por Eisenstein ao longo de décadas), nos permitem fazer esse mergulho no mundo; no mundo capturado, um mundo em cativeiro, de impressões e curiosidades intermináveis. Esse código fluido e difuso das imagens (por que vocês acham que o cinema mudo foi tão hospitaleiro com a vanguarda, o experimental e o abstrato?), quando atravessado por um código invasor – o código da língua, do diálogo, das palavras – é deixado para trás em prol de uma visão mais organizadora e racional do mundo. Esse encanto da imagem pura, do fluxo e do infinito cede passagem a uma ordenação natural da narrativa; uma ordenação que diz mais à parte de nós que pensa com palavras do que àquela que pensa com imagens. Nasce o cinema clássico, com seus musicais e comédias amalucadas. Nesse sentido, concordando com Saulo, os talkies mataram uma arte e criaram outra. Não seria a última morte do cinema, mas certamente foi a de mais penoso luto.
Ciro I. Marcondes
Para ilustrar, deixo aqui um fabuloso trecho de "A última gargalhada", de Murnau, filme concebido inteiramente sem palavras, letreiros ou inter-títulos.
A grande descoberta do cinema falado, foi o silêncio.
ResponderExcluirMario Quintana
ResponderExcluirHá uma interessante discussão a respeito de o culto estético ao cinema mudo ter começado após o cinema falado... como uma espécie de nostalgia, e que os espectadores e crítocos da época não enxergavam este cinema da maneira exorbitantamente estética como vemos hoje. Mesmo assim, já tive acesso a muitos texto da época que entendiam já o cinema mudo como entendemos hoje: a expressão poderosa da imagem, que se transmite sem o código usurpador da palavra.
ResponderExcluirCiro
Eu gostaria de pesquisar mais sobre o tema. Você me indicaria quais bibliografias?
ResponderExcluirhttp://www.uel.br/revistas/uel/index.php/estacaoliteraria/article/view/30719/21686 Tangencia a questão com conhecimento e elegancia.
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